terça-feira, 23 de junho de 2009

Últimas do Festival!

por Sandro Henrique

“Quando Gregor Samsa despertou uma manhã na sua cama de sonhos inquietos, viu-se metamorfoseado num monstruoso inseto.” - dados o personagem, o tempo, espaço e o fato em curta frase, lançadas a A metamorfose, de Franz Kafka, e suas metáforas, às quais as artes com ou sem aura sempre reportarão: afinal, a metamorfose não é apenas pensada pela arte como também nela se faz. Inspirada nesta obra, a cena do 10º Festival de Cenas Curtas escolhida para receber subsídios do Galpão Cinehorto para se desenvolver como espetáculo, “A mudança” expirou sensibilidade e capacidade de transformação de uma importante obra da literatura em uma leitura cênica feita pela inquietação de sonhos de jovens artistas mineiros. No segundo ano do projeto “Cena espetáculo” do Festival, a escolha do júri, composto por Carolina Braga, Helena Mauro e Sara Rojo, entende, assim, o despertar possível que pode passar por novas metamorfoses, e, ao contrário do monstro, se dar à mostra. Então, da sua forma, trazer à cena é revelar o que se costuma ocultar como os monstros, posto a claridade de uma manhã – que é corrente metáfora para o novo, o jovem. Serão necessárias muitas metamorfoses, e lançados os dados, disse Mallarmé, não será abolido o acaso. Mas a Cia. Do Chá entende a mudança, saberá desenvolver o lance e dar as suas formas.
Partindo das idéias de mudança, pensemos em que ordem se dá o fazer artístico neste Festival: formas em construção e reconstrução, transformações, renovações, acasos não abolidos. Partindo desses sentidos, que foram trazidos ao palco do Festival, continuemos curtindo aqui as cenas do final de semana, 20 e 21 de junho, e um pouco do que mostram despertado pelas inquietações de seus sonhos.


− Todos os Animais são iguais, mas alguns Animais são mais iguais aos outros, com direção de Luiz Carlos Garrocho, é um título verborrágico, mas a cena, ao contrário, é atravessada pela ausência de palavras, as quais somente aparecem em uma tela e por uma voz em off. Ausência esta potencializadora da inquietação das errâncias de sujeitos perdidos em um lugar indefinido, na “zona fronteiriça”, como explícita o grupo. A fronteira é paradoxo do limite e sua ausência, zona da mistura - lugar da morte? Da tela se exibem imóveis as palavras “tudo passa”, e pela repetição impressa nela provoca também a impressão do movimento. Essa falsa projeção das palavras, porém, está nas costas desses sujeitos (espectadores dentro do palco?), os quais, por sua vez, pelo olhar mostram que vêem passar... nada (seriam um espelhamento da platéia?) Nos seus bancos, são espectadores de olhares vazios, que quando se põem a andar, o fazem em círculos e repetindo certos movimentos. Que papel tem uma arma para aqueles passantes que andam sem sair do lugar? Tomando-os pela cena, será esta também um movimento em círculo, que não sai do lugar?

− A aurora das nossas vidas, que os anos não trazem mais, não é só amor, sonhos e flores. Dia de prova, da Companhia do Ator cômico, traz uma visão da infância, em um espaço emblemático dessa fase, a escola, com riso, mas o confronta com a usurpação e incompreensão do outro. Com pleno domínio do trabalho com máscaras, o figurino, iluminação, sonoplastia e cenário se somam para deixar o público entre o humor e o enternecimento diante de forças contrárias em um dia de prova de uma menina e um menino. Da mesma forma que tudo está em uma proporção maior em cena, também se pode ampliar as discussões e incômodos trazidos com delicadeza por ela. Os personagens não representam apenas alunos de uma escola, mas também a infância, com suas incoerências, diferente de uma visão idealizada. Além disso, representam também a maldade e a bondade lado a lado, mas também sua mistura na figura do professor. Podem ser vislumbradas também as provas a que se passa em qualquer dia. Uma cena simples com máscaras sem palavras conseguiu também ganhar grandes proporções, as mesmas que não olham para a criança e o aluno com desprezo, mas os amplia. A aurora aqui é da simplicidade, expressividade com pleno domínio artístico, que nossos anos atuais parecem, às vezes, não trazer mais...

− Depois de A mudança, veio Primavera, de Ipatinga. Ecoou nas três últimas cenas da noite a consciência crítica que passa a ter Gregor dessa primeira quando acorda em um dia diferente dos outros. Ele fala das mudanças de móveis feita pelos familiares, mas que “quando vemos estamos todos entulhados.” As palavras de Gregor de A mudança também precisam ser pensadas para o teatro: a inquietação por mudanças é importante, assim como empreender essa inquietação em cena, como forma de experimentação, mas esta deve ficar atenta para não incorrer em movimentações vãs, excessos de uso de recursos e objetos e até mesmo ânsia do uso do corpo e da voz em suas tantas potencialidades, para que não se acabe dando por conta de que, por fim, estamos entulhados de muitas pretensões, muitos movimentos, muitos recursos. Pode soar estranho aos outros essa consciência, como ocorre com a família de Gregor, mas é preciso também acreditar nela. Primavera, como as outras duas que a antecederam, prima pela leveza e simplicidade. O jogo será dado em um tapete vermelho rodeado por cadeiras pretas. Definido “o espaço é uma feira livre”, nele se entra para a ação: seja pelo corpo ou palavra. Não há objetos cênicos, o figurino é simples, um vestido, ou blusa branca com calça qualquer, e ainda, se alcança efeitos de luz nele: envermelhado pelo reflexo da luz branca no tapete. A ironia quanto ao “entulhamento” também se mostra na cena: com um texto com profusão de trocadilhos e prolixo em seu vocabulário, para, no entanto, narrar situações cotianas de feira, livre de muitos entulhos.

− As duas primeiras cenas da noite de domingo do Festival, 21 de junho, foram por via diferente destas últimas do dia anterior. Elas buscaram lançar mãos de várias possibilidades em suas encenações. São ricas e impressionantes, nesse sentido. Porém, se excederam no tempo de quinze minutos permitido para a cena no Festival, o que leva a perguntar se também não houve excessos nas escolhas, ou falta delas, em suas encenações. A reflexão, cuja incursão é indicada aqui, aponta os riscos das escolhas, mas entende, claro, ainda a necessidade de passar por eles, uma vez que são processos que aponta um porvir. Quando a energia acaba, criação coletiva, apresentou um ritmo frenético, com vários fragmentos e longo enredo, para o qual cumprir não falou energia. Interessada em confrontar a tecnologia e o homem moderno, foram trazidos para a cena o rádio, a TV, o telefone e o computador. Em contraposição a eles, como forma de tratar do velho e o novo, na trilha, a presença constante de música clássica. Também destacaram-se os black outs que imprimiram na cena a idéia de cortes cinematográficos e imagens externas gravadas nas ruas de BH exibidas por uma televisão, as quais completam o que ocorre no palco. Já em O beijo, de Curitiba, também apresentada como criação coletiva, houve sonoridades do microfone, do canto, da música, dos aplausos, do inglês de gravações de cursinhos de língua... e várias referências a gêneros cinematográficos e televisivos... além disso, humor com elementos, por hora, surreais. O grupo Teatro de Breque elencou vários elementos para falar de um diálogo simples e curioso: um pedido de um amigo a sua amiga para o teste de um beijo. O beijo teve gosto de aurora no teatro e desejo de criação. Nas duas cenas primeiras cenas de domingo saltam aos olhos o proveito da coletividade, mas há uma característica das cenas que precisa ser pensada e pode ter partido daí: a profusão de idéias em conjunto, e menos focos, recortes de escolhas.

− Quebra do riso, então, para uma cena livremente inspirada em “Cartas a um jovem poeta”, de Rainer Maria Rilke. Da solidão que há em nós, dirigida por João Filho: diálogos entre o eu e tu e o recorte desses para a solidão que perpassa o “nós”, cujo plural é menos para conjunto que para existências apartadas. Nesse sentido, em praticamente todo decorrer da cena, há um ator no palco e outro na platéia, o que para alguns que assistiram à cena, foi apenas um ator no palco e uma voz vinda da platéia. Deve-se salientar aqui as falas que partiram de um texto poético, e assim, difícil, pelo que apreende-se em cena, que foram articuladas com habilidade pelos atores. E como em círculo giraram os dois, o Festival teve como última cena da noite também outros palhaços, fechando seu ciclo da mesma forma que foi iniciado com o Boxe com palhaçada do grupo convidado de Manaus. Em O sequestro, de Salvador, com olhar crítico sobre a violência como palhaçada, os palhaços de Danilo Novais e Yoshi Aguiar se mostraram hábeis no gênero e atentos ao Festival retomando várias cenas como piadas. Por eles, além da inteligência do humor e domínio do arte do palhaço, foi possível ainda relembrar diversos momentos do Festival. Após os aplausos da platéia, a cena desdobrava-se em vários finais, entrecortados também pelos aplausos e acabaram revelando o desejo de não finalizar o Festival, e que fosse possível alongá-lo por mais o tempo... Esperemos, então, por mais alguns momentos com as cenas mais votadas no próximo final de semana...

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