Por Sandro Henrique
“Fiat lux”, riscado o fósforo da “Caixinha de lembranças”, e houve entre trevas várias luzes. Até que um clarão estoura e foram criados “Francisca” e seu marido. Mas Francisca não manda vir a ela os passarinhos, come o ovo que o marido amassou e trama expulsá-lo do seu inferno para ganhar o paraíso. E assim foi. Baixa o santo para o “Corpo Fechado”. Mário de Andrade se faz herói sem nenhum caráter específico, brasileiro que é de todos os santos. Debord está morto. E foi dito “Eu me vendo por muito menos do que você paga”. Então vieram do alto chuva de tomates. E o homem cai. Depois veio chuva de pratas. E um homem pisou no tomate. E se deu na saída ao público o que é do público. Assim foi. Assim seja.
Aqui, curtindo o Festival, como foi dito no bloco “CURTAS DA ABERTURA DA 10ª EDIÇÃO DO FESTIVAL”, novas sobre as cenas citadas acima apresentadas no segundo dia, 19 de junho, do décimo festival.
Do palito de fósforo, do isqueiro, da lanterna, da vela, dos refletores: as luzes da primeira cena da noite de sexta-feira partiram de diversas fontes. Em suas diversas formas, as luzes de “Caixinha de lembrança” revelam o papel da iluminação integrado aos outros elementos cênicos de forma contundente. Para repensá-lo em cena, é possível partir de outros sentidos correntes da própria palavra, às vezes esquecidos: aquele usado para falar do sagrado, ou quando se tem uma idéia, conhecimento novo, ou lembrança. A cena dirigida por Tião Vieira apropriou-se claramente deste último. Em “Caixinha de lembranças”, a luz se faz entre trevas do cenário, como momentos de fulgor, em que se vislumbra bonecos ou atores que desaparecem e reaparecem como instantes fragmentados. As “lembranças”, assim, se dão por essas luzes, como breves iluminações da memória. Também os escuros do palco mostram os pontos obscuros dela. Se o palco é também uma caixa preta, a cena faz dele, então, esta caixinha da memória, das lembranças e esquecimentos, e insere nele várias outras caixinhas: um mise en abyme. Dessa forma, a memória: rede de compartimentos abertos que continuamente se reorganizam, ou se ampliam pelo movimento das caixas. Dentro delas: bonecos de todas as formas e tipos. Estão eles compondo sujeitos dos compartimentos da memória? O que lhes traz vida? Como podem ganhar o aspecto mórbido e enternecedor simultaneamente? Essas perguntas são resolvidas cenicamente. Vale, porém, apontar que há muitas quebras de ritmo da cena, que não se revelam interesse do seu conjunto. O texto também é pretensioso, não pelas frases oraculares, dos quais se faz, mas pela própria elaboração delas, o que acaba por ilustrar uma “vã filosofia”, a qual citam, uma de suas referências, por sinal, muito fácil, e, por isso mesmo, armadilha que demanda mais cuidado para não ser armada.
Das trevas da cena anterior ao choque de uma luz forte que, instantaneamente, provoca cegueira. O caráter ambíguo deste primeiro instante permanece, de outra forma, em “Francisca”: a morte, o assassinato, tema que aborda, não costumam ser associados à claridade, pelo contrário. Mas, às claras, Francisca, desdobrada em duas atrizes, recurso que tem sido recorrente atualmente e que ocorrerá também na cena seguinte, conta seus sofrimentos com o marido e o descreve, além das palavras, também com o corpo. Enquanto uma narra, a outra interpreta, segundo sua visão, o infame marido. As mulheres, tendo a platéia como cúmplice, tramam o assassinato dele: tanto no sentido de fazer intriga ao elaborarem seus planos, e também na articulação da fala, no sentido de tramar como enredar, o que é possibilitado pela presença de narrações em cena. O crime é tratado com a frieza da luz branca sobre elas. Neste momento, elas não o incorporam mais, ilustram o arrastar do corpo do marido até a janela em que será lançado com o arrastar de uma cadeira: agora o marido é apenas um objeto a ser descartado. Vários tipos textuais se desdobraram nas falas das Franciscas: as listas de remédios e nomes de paraísos fiscais, dissertações sobre o direito de matá-lo, relatos da péssima vida conjugal. Por fim, também inserem outra cena dentro da que se fazia, a qual é guiada por essas falas de diversos gêneros, ao ensaiarem diante do espelho o relato sobre a morte do marido. O que é significativo numa cena que tem como base uma narração feita pelas personagens ao público, como questionamento desta base, já que soubemos do caso pelo relato das mulheres, são elas mesmas personagens e narradoras em cena que ensaiam de modo canastrão, por fim, o choro fácil de “quando se está feliz”, diante do espelho. Vale salientar que a cena é ágil, seu ritmo tem a claridade da sua iluminação, mas deixa, porém, um gosto de teatro de passos marcados, não por inabilidade das atrizes ou direção, mas no sentido de plena confiança das próprias escolhas em que o risco, como perigo, parece não ser considerado da mesma forma que o questionamento feito na cena final. Pelo contrário, como tudo parece riscado, marcado, talvez mesmo porque o crime de Francisca pareça um crime perfeito, acaba sendo esse o risco que incorre a cena: a de não permitir suspeitas sobre si mesma.
Como foi apontado anteriormente, a belohorizontina cena “Corpo fechado” lançou mão dos mesmos recursos da carioca que a antecedeu: dois atores interpretam o mesmo personagem e o uso da narrativa dirigida à platéia. Imediato déjà vu que, se não é motivo para precipitado julgamento, já incita discussões. A recorrência é fenômeno a que se deve atentar por provocar questionamentos quanto à formação de um gênero, ou estilo. Porém, pode indicar também uma conformação de um modelo a ser seguido. O que é digno de nota aqui é apenas ponderar o perigo da reafirmação do uso de certas estruturas e recursos como certeza e porto seguro de uma bem-sucedida encenação. As cenas comentadas aqui são bem-sucedidas, e não é o fato de serem ou não que deve ser questionado, mas suas certezas que podem se tornar embriões de paradigmas de um contexto, mas também conformações de modelos: discussão adequada para um festival como este.
- O desdobramento do Mario de Andrade de “Corpo fechado” principia, porém, quando há necessidade de outros personagens. É destaque da cena seu texto, no cuidado de pesquisa sobre Mário de Andrade e sua obra e a importância destes em suas relações com a cultura erudita e a popular brasileira, a elite e a margem, misturas que foram trazidas para a encenação. Os desdobramentos de Mário, então, talvez, também possam ser lidos como outra forma de dar corpo à polivalência de um sujeito como o escritor. Contracenam também, no sentido da mistura, “sinceridade e charlatanice”, como indica a sinopse da cena no Programa do Festival, ou em termos de características da cena: a poeticidade e o riso, a presença constante da fala e preocupação com o uso do corpo. Também como a cena carioca há uma forte convicção no próprio trabalho, que, ao invés de trazer-lhe o caráter da maturidade, pode levar à leitura desta cena como um corpo fechado em si mesmo, em que se convoca apenas as forças de Oxalá – que em termos greco-romanos são apolíneas, ordenadoras – se esquecendo daquelas que os trabalhos fazem, sabiamente, questão de invocar logo em seus inícios: as forças de Exu – próximas das dionisíacas - que aportam no caos, na desestabilização de certezas.
- {É Debord que está sentado no palco com seu incômodo olhar? - perguntam aqueles que estiveram na platéia da edição anterior do Festival de Cenas Curtas. Não, a sinopse do programa do festival diz que “Esperando Debord” falhou e que agora é “preciso enterrá-lo”. Como o silêncio é poderoso! A platéia está incomodada com o ator mudo parado no palco. Tem-se agora tomates à mão e pode-se lançá-los contra o incômodo homem que ocupa o palco. Que belo espetáculo as diversas direções e intensidades dos tomates sendo lançados de diversos pontos da platéia! De onde partirá o próximo? Qual será a mão capaz de atirar o primeiro tomate acreditando que não tem o desejo de fazer o espetáculo que não lhe foi oferecido a assistir? “Pegue o seu e divirta-se” - interpela uma voz em off. Que queda perfeita irrompida do nada! Grande corte na expectiva de que a cena seria a mesma do ano passado... - Faz-se aqui crítica? Isso é criticar?- Que trilha ótima! O uso das projeções sintoniza-se com a confluência de recursos da contemporaneidade... Não, não é possível levar essa cena a sério demais...mas que poder imagético e sonoro esta chuva de pratinhas! Isso! Tema político! Crítica da sociedade de consumo e comércio de arte! Ouve-se “Não há possibilidade de desenvolvimento da condição humana sem desenvolvimento material!” O ser humano vendido consume o produto e é também um. “Quem quer dinheiro?” - Quem não quer? - Não, não “eu não me vendo por muito menos do que você paga”! Eu não! Eu compro. Eu... “Compramos seu voto” Será que eu vendo o meu? Não, se estão criticando o poder da compra eu não posso me vender! Não serei eu um vendido? Absurdo comprarem os votos num Festival? Mas quem os vende não terá aderido à cena, entrado também na performance, creditando a ela o reconhecimento de se está inserido num jogo de lucro? Despojando-se de hipocrisia? Será que eu vendo...? Pelo menos, após os minutos do grupo (?) “Conjunto vazio”, pelo menos os meus bolsos não sairão assim...}
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