sexta-feira, 19 de junho de 2009

Curtas da abertura da 10ª edição do Festival de Cenas Curtas

por Sandro Henrique


Colocar planta para curtir em cachaça é costume mineiro: forma de permanência do gosto. Façamos aqui, então, uma forma de curtir as cenas, permanência do gosto, que se faz também pela linguagem escrita: exercício crítico, que interessa ao teatro como necessidade de se pensar o fazer artístico, registrar impressões e efeitos, permitir reflexões para experiências futuras. Novidade desta edição, o blog do festival, então, permite uma nova relação com a arte teatral, lançando mão de uma nova linguagem para sua reflexão, depois de já termos tido, em edições anteriores, a estréia dos bate-papos com os atores no dia seguinte à apresentação das cenas. Bate-papos que são significativos para a troca de experiência entre público, artistas e convidados. Façamos aqui, porém, de maneira menos demorada que planta em cachaça, mais próximo do sentido das Cenas Curtas, um exercício de críticas curtas, em notas que contemplem todas as cenas da estréia do festival em festa do seu décimo aniversário.



  • O grupo Compalhaçada, de Manaus, Amazonas, abriu o festival mineiro apresentando “Boxe com palhaçada”, cena convidada para intercâmbio com o Festival de Breves Cenas, que teve sua primeira edição em março deste ano na região. Bastou a introdução brusca com a voz de Maria Bethânia e o choro da palhaça de Ariene Feitosa diante da foto de seu amado palhaço para provocar os risos da platéia. Seguiu-se a entrada dos palhaços de Jean Linhares e Idelson Mouta para disputarem a moiçola, o que cria um curioso triângulo amoroso que, para ser resolvido, acabará num ringue de boxe. Vale destacar o uso de pessoas da platéia para a construção do ringue, inserção que não foi despropositada, de forma que se permitiu a inserção de elementos inesperados, aos quais os palhaços estiveram atentos, como por exemplo, a desatenção de uma delas. Além disso, o ringue vivo criado na cena ganhou outros papéis, como de técnicos dos lutadores e de “gongolo” dos rounds. Ficou clara também a bem-sucedida relação com a platéia que permaneceu sentada, mas que foi conquistada pelos palhaços, o que revela que a cena alcançou um dos elementos fundamentais do gênero clownesco a que se propôs: a empatia com o público.


  • Abrindo um parenteses para destacarmos o Festival de Breves Cenas: Diego Monnzah, um de seus organizadores, contou que a primeira edição do evento foi um sucesso de público, que além de lotar o teatro chegou a ocupar as cabines dos técnicos de som e luz para assistir às cenas! Segundo ele, grande parte do público voltava nos outros dias do festival, que ocorreu entre 10 e 15 de março deste ano. A estudante de direito Camila Abitbol veio junto com o grupo Compalhaçada e os organizadores do festival de Manaus para assistir também às cenas do festival mineiro e, como espectadora, ela diz que cada cena é um “pequeno gostinho para algo que poderia ser maior”, o que deixa vontade de ver mais! Para saber um pouco mais sobre o Festival de Breves Cenas ainda está na rede o seu site, pelo endereço http://www.festivaldebrevescenas.com/ e o blog da Cia. Cacos de Teatro, a qual nasceu a partir do sucesso do deste evento: www.ciacacosdeteatro.blogspot.com.


  • Que o grupo de Manaus não seja convidado para se reunir à mesa com o grupo da cena seguinte, “Malevolência – Alguém tem que morrer”, e o porquê já está indicado no título. Parecem ter saído da tela de um filme do expressionismo alemão, ou de criação do Tim Burton, os convidados malévolos da cena, cuja a obscuridade é menos para o medo que para o riso, mostrando que este não se faz apenas pela via colorida. Já que entre os presentes o desejo é que alguém morra, cada um se empenha em forma de torturar e matar o outro, que insiste em sobreviver. Um médico doente com sua seringa somente consegue maquiar uma bailarina gorda e desajeitada. A navalha de um possível açougueiro retalha as costas de um homem do qual só saem penas, como um travesseiro que se mantém inerte. O corcunda, talvez um padre, batiza uma mulher afogando-a à força num tanque, a qual, por sua vez, buscar sufocar um deles com seus cuidados maternais, ao alimentá-lo e fazê-lo dormir. Pela ironia, exagero e estranheza é escrachado aos olhos do público, o que costuma ser ocultado em pretensas confraternizações: os atritos, as aversões uns pelos outros.


  • O absurdo presente na “Malevolência”, permanece com “5 cabeças a espera de um trem”, porém não se tratam de cabeças cortadas servidas à mesa, como seria ao gosto dos malévolos da cena anterior. Parece se realizar cenicamente o trocadilho daquilo que é sem pé nem cabeça, da mesma forma que é o texto e como são as músicas cantadas pelas cabeças. Não é apontada nenhuma pretensão do foco sobre as cabeças como metonímia ou demanda de um “close cinematográfico” feito teatralmente. As cabeças no meio do nada não esperam Godot, mas “Nick Van Drick”, cujo nome, porém, remete aos personagens de Samuel Beckett, Vladimir e Lucky. A espera também é infundada, a hora no relógio não muda, a “polinésia” dada como possível destino é mais um nome qualquer de um lugar, que um espaço geográfico específico, e corre por hora assuntos como espirros. É importante destacar a movimentação das cabeças, e a dimensão que um piscar de olhos pode ganhar no palco, lugar a que o senso comum associa apenas aos movimentos amplos. É possível pensar que as cabeças apontam para o que não há em cena: a racionalidade, a lógica, a inteligência capaz de mover as pessoas, de fazê-las deixar o pasmo da espera vã. Nesse sentido, ironicamente, o que se mostra é o que está ausente, como forma de revelar aquilo que não se vê.


  • Saindo da espera, Cristina Vilaça e Marcelo Cordeiro se colocaram em '“O caminho do cemitério”. A cena é uma adaptação de um conto de Thomas Mann, que privilegiou o ato de narrar e a presença do gênero épico-literário, o que na contemporaneidade chega a parecer como ousadia, uma vez que tem sido recorrente a recusa da palavra. Enquanto se narra o caminhar de um homem, este o constrói com suas pedras, o que além de poder ser entendido como metonímia do caminho, remete também à vida do sujeito, cheia de percalços, identificada com a miséria e “infelicidade”. O primeiro narrador, em seguida, se torna personagem e cruza com o homem. Esse encontro acaba por se fazer como um embate. O homem, então, narra o que ocorre com aquele que encontrou. O que se sabe de cada um deles é pela voz do outro, o que se mostra como visões parciais, apontando para incompreensão humana, a incomunicabilidade entre os sujeitos. Dessa forma, a narração de cada um indica a cegueira daquele que fala em terceira pessoa com relação ao outro. Se o caminho é para o cemitério, este marca com a idéia de morte a possibilidade de pensar o conflito como questão existencial, e a pedra que não apenas no meio do caminho, mas deste feito dela.


  • Se as três primeiras cenas do festival pesquisaram a diversidade de elementos cênicos, focou em parte do corpo, ou mesmo revisitou o texto literário, na última cena da noite “Para aqueles que lavaram as mãos”, de São Paulo, foram usados vários recursos artísticos e exploração da relação com os objetos. A cena se iniciou com projeções de imagens, às quais se seguiu um canto em capela vindo da platéia. Dois homens, então, se movimentam e se tocam em cena: poucas palavras. As imagens projetadas não são realistas, mostram danças, esperas, olhares. É também por elas que se faz a presença feminina: apenas como projeções, na ordem do inapreensível, ao qual apenas se pode vislumbrar. Os homens brincam entre si, formam caminhos de areia em cena, se tocam e afastam, o que insere a temática homoerótica, também sem ser apreendida, totalmente, sem realização plena na descoberta de um pelo outro. Os dois acabam por brincar com água de mangueira e divertem-se. A água escorrendo de um objeto que pode ser visto como fálico, simbolicamente, pode apontar para idéia do gozo possível entre os dois, que acabarão por turvar a visão do encontro entre eles em uma tenda. Como nos diz a letra do canto, que acaba por se fazer dentro do palco: partem no vapor do mar, e por ele se dissipam.

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